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“O gueto está a ser liquidado”

Manuel Loff Historiador. Escreve quinzenalmente à quarta-feira

022, 2023. Dois anos, duas guerras. Há um ano, com a propaganda macarthista, a preto e branco, a propósito da guerra na Ucrânia, já se percebia bem que, na narrativa dominante ocidental, a vida não tem o mesmo valor dependendo de quem a perde. Era assim no colonialismo, é assim hoje. Um ano depois, os mesmos governos ocidentais que asseguravam ver genocídio no comportamento das tropas russas (9,7 mil civis mortos nos territórios sob controlo da Ucrânia em 19 meses de guerra) ainda não viram nada que os levasse a denunciar Israel (como denunciaram a Rússia) no Tribunal Penal Internacional, depois de as tropas israelitas terem matado o dobro (19,7 mil) de palestinianos em Gaza só nos primeiros 2,5 meses desta nova campanha de represália, de terrorismo de Estado. Feitas as devidas proporções de tempo e população total, por cada ucraniano morto morreram já 246 palestinianos em Gaza. Parecem poucos?

Para Biden, Von der Leyen (ou para António Costa), quanto custa uma vida palestiniana? Quanto custa a vida de milhares de crianças, das centenas de profissionais de saúde, jornalistas, trabalhadores e voluntários das agências das Nações Unidas e das ONG humanitárias que, todos os dias, as bombas do ocupante israelita eliminam com, até agora, total impunidade? Face a todas as provas de um genocídio em curso contra um povo sujeito a ocupação, nenhum governo da NATO ou da UE impôs sanções a Israel (que viola o direito internacional há 75 anos e ocupa ilegalmente territórios palestinianos há 56) como impôs à Rússia ao fim de horas da invasão de território ucraniano. Não se abriram de par em par fronteiras para acolher refugiados palestinianos como se abriram para milhões de ucranianos, não se romperam relações comerciais, não se montou esquema algum de boicote cultural contra Israel como, de forma precipitada e desproporcionada, se montou contra escritores, artistas ou orquestras russas – pelo contrário, a campanha de boicote (BDS) que desde há anos está organizada contra a ocupação israelita é criminalizada em vários estados ocidentais (EUA, Alemanha) por ser “antissemita”!

Gaza ilumina com uma luz muito crua a nossa visão ocidentalista, preconceituosa, supremacista, do mundo e de quem o habita. Podem os israelitas matar, sequestrar (prender sem acusação nem julgamento é o quê?), violar todos os dias direitos humanos, que os Estados NATO não deixam de lhes fornecer, desde há décadas, apoio militar. Se se aplicasse a mesma retórica que se aplica na Ucrânia, não deveriam os mesmos Estados enviar armas para apoiar os palestinianos e o seu direito à autodeterminação, reconhecido em todos os tratados e resoluções das Nações Unidas?

Gaza proporciona todos os dias, de forma trágica, esse permanente “momento da verdade” de que falou Guterres. Hoje percebemos melhor até onde está a chegar a censura e o ataque à democracia que se sustenta neste discurso “choque de civilizações” que Israel tem imposto aos seus aliados ocidentais. Um dos mais

Gaza ilumina com uma luz muito crua a nossa visão ocidentalista, preconceituosa, supremacista, do mundo e de quem o habita

extraordinários episódios é o da censura da escritora judia Masha Gessen. Por ter considerado “o termo ‘gueto’ mais adequado (...) para descrever o que está a acontecer em Gaza agora. O gueto está a ser liquidado” (The New Yorker, 9/12/2023), uma fundação ligada aos Verdes alemães suspendeu a entrega do prémio que lhe havia concedido. Teve sorte: por muito menos, professores têm sido expulsos das suas universidades, manifestantes presos, trabalhadores despedidos.

Os governos dos países NATO, na sua tradicional arrogância, falam como se pela voz deles falasse a “comunidade internacional”. Na sua descarada duplicidade, esta voz é mesmo só deles, e o que se ouve é pura hipocrisia. Até um antigo assessor para questões de segurança do governo israelita percebeu que “a Palestina ocupa atualmente um espaço simbólico. É uma espécie de metamorfose de rebelião contra a hipocrisia ocidental, contra esta inaceitável ordem global e contra a ordem pós-colonial” (David Levy, Guardian, 26/12/2023). E contra a crescente “israelização” a que assistimos do Ocidente: consenso nacional-religioso contra o “inimigo” interno, paranoia racista e muros contra os inimigos da “civilização”. A receita da extrema-direita.

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2023-12-27T08:00:00.0000000Z

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